Devoção pura e espírito competitivo por Srila B. B. Bodhayan Maharaj

-->
DEVOÇÃO PURA E ESPÍRITO COMPETITIVO
(Parte I)
Por Srila Bhakti Bibudha Bodhayan Maharaja Acarya, Gopinath Gaudiya Math

Se estudamos o exemplo de nossos acharyas anteriores, vemos que a competição não é um princípio religioso. No entanto, hoje em dia vemos na Vaishnava Sampradaya, especialmente na Sri Brahma Madhva Gaudiya Saraswata Sampradaya, que quase todas as sociedades e acharyas estão tentando mostrar que são melhores que os demais. Essa é uma das razões que explicam aqueles artigos na Internet cujo único propósito parece ser derrotar os demais. Naturalmente, cada discípulo segue os modos de seu mestre ou mestra espiritual, de tal maneira que também prega o mesmo espírito competitivo. Se um discípulo pergunta a seu mestre “Posso alcançar minha meta espiritual cantando os Santos Nomes e propagando as glórias de minha sociedade e de meu acharya tanto quanto possível?”, o acharya responderá com o silêncio, que é um sinal de sua tácita aprovação: “maunam sammatilaksanam”. Dessa maneira, o mundo da Madhva Gaudiya Saraswata às vezes parece um campo de batalha.

Parece que acreditamos que as qualificações de nossa sociedade ou de nosso acharya provêm do número de partidários, de devotos e de centros que possuam, ou de quanta riqueza e opulência material tenham acumulado. É por isso que muitos devotos de nossa sampradaya parecem correr atrás da religião, da riqueza ou dos prazeres sensoriais em nome de Mahaprabhu, em vez de estar buscando o Amor Divino, o quinto propósito da vida ou Panchama Purushartha, que é o que ele veio nos dar.


 

Mahaprabhu disse

prithivite ache jata naradai gram
sarbatra prachar hoibe mor nam

Meu nome se extenderá a cada povo e cidade do mundo. Essa predição chegou a cumprir-se em toda sua extensão porque o Seu nome chegou a todos os cantos do mundo, dificilmente deixando um lugar sem ser tocado. Apesar disso, muitos devotos mais velhos da sampradaya estão se sentindo frustrados pela maneira como se comportam as atuais organizações vaishnavas e seus acharyas. Sentem que, ao invés de difundir a mensagem de Mahaprabhu, seus seguidores se encontram comprometidos em políticas sutis contra outros devotos – puros ou impuros – para promover sua própria sociedade ou acharya.

Quando os devotos, depois de uma longa prática, começam a perder o gosto por cantar o Santo Nome, naturalmente querem saber qual é a causa. Ouvimos escutar de nossos acharyas que, quando isso acontece, deve-se ao fato de que cometemos ofensas no início de nossa vida de bhajan, consciente ou inconscientemente. Quando isso acontece, alguns permanecem ativos em sua sociedade e seguem seu acharya, sem entusiasmo ou gosto verdadeiro. Outros devotos deixam sua sociedade com uma atitude negativa em relação aos vaishnavas em geral. Esses antigos devotos se dedicam a negócios ou trabalhos em lugares mundanos em busca de seu sustento diário. Essa é uma sinopse da atual situação do mundo vaishnava.

Prabhupada Srila Bhaktisiddhanta Saraswati Goswami Thakur disse uma vez que não nos associamos com os vaishnavas para nos tornarmos construtores em ladrilho, madeira e pedra. Se é necessário vender o ladrilho ou qualquer outra riqueza a fim de difundir a mensagem de Amor Divino de Mahaprabhu, devemos fazê-lo. Devemos cultivar essa atitude a serviço de Srila Bhaktisiddhanta Saraswati Goswami Thakur Prabhupada, Prabhupadas Rupa, Sanatana e Sri Jiva Goswami e Sri Krishna Chaitanya Mahaprabhu.

Estamos pregando somente para aumentar a riqueza mundana de nossa própria sociedade? Se é assim, o que vamos conseguir? Estaremos realmente seguindo o caminho traçado por nossos mestres espirituais anteriores? Ou estamos simplesmente usando seus nomes e suas palavras para reforçar nosso propósito de aumentar a riqueza mundana? Este é o exemplo que nos deixaram Prabhupadas Rupa, Sanatana e Sri Jiva Goswami ao construir gloriosos templos para suas deidades, enquanto eles mesmos passaram o resto de suas vidas escrevendo livros debaixo de árvores?

Srila Bhaktivinoda Thakur cantou em um de seus kirtans (Kalanya-kalpa-taru) o seguinte: “mukhe bolo prem prem bastuta tyajiya hem shunya granti achale bandhan”. Estamos pregando insistentemente aos outros sobre o Amor Divino, mas na realidade estamos muito longe dEle. Nossa atividade diária nos fez perder esse diamante. Agora não temos nada, só uma panela vazia em lugar da transbordante panela divina. Em outra parte do mesmo kirtan, Srila Bhaktivinoda Thakur escreveu o seguinte:

akaitaba krishna prem jena
suvimala hem ei phal nriloke
durlabh kaitabe vanchana
matra hou age jogya
patra tabe prem haibe sulabh

“O Amor Divino é como uma jóia rara de ouro brilhante ou diamante. Quando nos liberamos de atividades hipócritas e nos rendemos absolutamente a Seu Serviço, estaremos qualificados para alcançar esse Amor Divino”. Na realidade, o diamante de Krishna Prema é muito raro neste planeta. Em vez de nos refugiar na hipocrisia para enganar os outros, devíamos nos fazer dignos de receber o Amor Divino, porque, mesmo sendo muito raro, Prema se torna muito fácil para aqueles que se fizeram merecedores, livrando seus corações da hipocrisia e do desejo de enganar os outros. Se examinamos a essência da citação anterior, vemos que Srila Bhaktivinoda Thakur explica que aquilo que hoje chamamos Prema (Amor Divino) é na verdade mentira ou engano. Meu amado Mestre Espiritual, Sua Divina Graça Srila Bhakti Promode Puri Goswami Maharaj, explicou em um de seus discursos que o primeiro sintoma do sentimento de separação são as lágrimas que se derramam quando se está cantando o Santo Nome. Ele se perguntava: “De onde vêm minhas lágrimas? Não choro facilmente, nem se ponho pimenta nos meus olhos!”

Srila Gurudeva se expressou sobre si mesmo dessa maneira humilde somente para nos dar uma lição, porque eu mesmo o vi muitas vezes chorando à noite e se lamentando por sua separação do serviço a Krishna. Qual é a atual condição de nossos corações em relação ao sentimento de separação de Krishna? Como pretendemos ter Amor Divino (Prema) se temos metas egoístas e estamos cada vez mais dedicados a alcançá-las?

Segundo Srila Narottam Das Thakur, “apana bhajana kath na kahiya jatha tatha”, que significa que não devemos demonstrar ou discutir sobre nossos sentimentos de separação com qualquer um. Devemos mantê-los em segredo, de maneira que possam crescer e desenvolver-se. Hoje em dia estamos mostrando, difundindo por todos os meios, nosso assim chamado sentimento de separação e nossa relação secreta com Krishna a pessoas novatas com o propósito de atraí-las para nosso lado. E mais, discutimos com os devotos neófitos aspectos muito íntimos da relação conjugal de Radha-Krishna, só para mostrar-lhes que temos um amplo conhecimento da Vaishnava Siddhanta. Mas tomemos o exemplo de Mahaprabhu: Ele discutiu esses assuntos em um lugar muito íntimo, Gambhira em Jagannath Puri, onde Ele viveu por dezoito anos com Swarupa Damodar Prabhu e Ray Ramananda Prabhu, Seus associados mais íntimos. Estamos seguindo realmente as instruções de Narottam Das Thakur e o exemplo dado por Mahaprabhu?

Hoje em dia, apesar de pertencermos à mesma sampradaya, criticamos os demais para roubar devotos de outras famílias, fazer crescer a nossa própria e assim poder mostrar nosso poder. E fazemos isso em nome da pregação externa! Esse é o tipo de pregação que Mahaprabhu mostrou? Todos sabemos quais foram seus padrões de comportamento. Quando converteu Prakashananda Saraswati, o líder do grupo impersonalista, não o fez de forma agressiva ou para provar que era melhor. Ainda que Prakashananda fosse um impersonalista, Mahaprabhu de todas as formas mostrou as qualidades vaishnavas de humildade e cortesia para com ele.

Uma vez, quando Mahaprabhu estava visitando Kashi, Sripad Tapan Mishra e Chandrashekhar Acharya lhe solicitaram com intensidade que estabelecesse a devoção pura em sua cidade, porque como devotos eles estavam cansados de ser constantemente insultados pelos imperssonalistas. Nessa mesma época Mahaprabhu foi convidado à casa de um brâmane, onde se congregavam vários imperssonalistas. O líder dos mayavadis, Prakashananda Saraswati, perguntou a Sri Krishna Chaitanya Mahaprabhu porque Ele não se associava com eles. Mahaprabhu lhe respondeu com humildade: “A instrução de meu mestre espiritual foi que as pessoas bobas somente deveriam cantar o Santo Nome, em vez de ler o Vedanta. Eu sou o bobo número um, de acordo com o julgamento de meu mestre espiritual; como posso me associar com os senhores, que estão dando esses discursos eruditos sobre as escrituras?”

harer nama harer nama harer namaiva kevalam
kalau nastyeva nastyeva nastyeva gatir anyatha

Dessa maneira  Mahaprabhu quis dizer que a essência dos Vedas e de todas as escrituras é o Sri Santo Nome. Mahaprabhu fez então a seguinte declaração sobre Krishna Prema, citada no Sri Chaitanya Charitamrita:

krishna vishayak prema
parama purushartha jar age
trina tulya chari purushartha
panchama purushartha
premanandamrita sindhu
brahmadi-ananda jar nake ek bindu

Dentre os cinco purusharthas, Prema é o maior, melhor que os outros quatro: religião, riqueza, prazeres sensoriais e liberação. Em comparação com o quinto purushartha, esses outros quatro objetivos da vida não têm muito valor, assim como um maço de capim. O quinto purushartha, Krishna Prema, é como um oceano de feliz amor nectáreo. Nem o Senhor Brahma, o filho de Deus e criador do universo, provou uma gota sequer dEle. Então, com a adequada etiqueta vaishnava, Mahaprabhu venceu o comentário de Shankaracharya e estabeleceu seu próprio siddhanta: Deus é opulência, plena bem-aventurança, eternidade e consciência. Depois disso, Prakashananda, o sannyasi mayavadi, e seu grupo de seguidores se renderam aos pés de lótus de Mahaprabhu. O ponto é que Mahaprabhu não mostrou um espírito agressivo ou competitivo, inclusive em relação aos seus oponentes. Isso contrasta com a atitude que assumimos hoje em dia, quando nos relacionamos com quem está em nossa própria sampradaya; o que dirá com os mayavadis...

Também no Srimad Bhagavatam o Senhor Krishna nos mostrou, por meio da história de Arjuna, Ugrasena Maharaj e do brâmane piedoso cujos filhos morriam ao nascer, que o espírito desafiador e competitivo não faz parte da devoção.

Uma vez, no reino de Maharaj Ugrasena, havia um brahmana cuja esposa havia dado à luz nove filhos varões. Infelizmente, cada vez que um bebê nascia, imediatamente morria, sem razão aparente. O pai dos meninos responsabilizava o rei Maharaj Ugrasena por essas mortes. Todo ano, o brâmane chegava ao palácio do rei levando uma criança morta, amaldiçoando Maharaj Ugrasena, culpando-o pela morte do seu filho. O rei, como um acharya, mostrava tolerância, permanecendo calado.

Depois da nona morte, Arjuna, o terceiro pândava, estava presente e ouviu os insultos que o brahmana lançava sobre o rei. Ele lhe perguntou qual era a razão de suas reclamações. O brahmana culpou as atividades pecaminosas do rei pela morte de seus filhos. Arjuna se surpreendeu ao escutar as acusações do brahmana, mas ficou convencido de que eram verdadeiras. Arjuna se encheu de falso orgulho e do desejo de derrotar Maharaj Ugrasena, e disse ao brahmana que o chamasse da próxima vez que sua esposa estivesse a ponto de dar à luz, que ele viria e protegeria a criança das forças da morte.

O piedoso brahmana achou estranho que Arjuna afirmasse que teria êxito onde haviam falhado Vasudeva, Sankarshan, Pradyumna e Aniruddha. “Como podes salvar meu filho?”, perguntou. “Não me importam esses outros”, respondeu Arjuna; “eu te mostrarei meu poder quando sua esposa der à luz”.

O brahmana ainda tinha dúvidas, mas Arjuna orgulhosamente lhe fez a promessa de que, se não fosse capaz de salvar a vida de seu próximo filho, entraria no fogo e destruiria seu próprio corpo.

Quando chegou o tempo, o brahmana lembrou a promessa de Arjuna e mandou chamá-lo. Arjuna foi à sua casa equipado com o arco e outras armas. Ao chegar, fez uma cerimônia de purificação, cantando alguns mantras para proteger o lugar, e se sentou em frente à mulher do brahmana.

Infelizmente, Arjuna, o amado amigo de Krishna, esqueceu-se de Krishna esse dia. Quando cantou o mantra de proteção, usou o mantra namah shivaya em vez do mantra de Krishna para purificar seu corpo e sua mente. Arjuna se sentou em frente à esposa do brahmana com seu arco de guerra, esperando o mensageiro da morte; porém, logo que a mulher deu à luz, o bebê morreu, tal como havia acontecido em todas as outras ocasiões. Arjuna ficou assombrando porque o menino morreu bem na sua frente.

Ele se levantou para buscar o menino depois da morte, aonde ninguém havia ido. Procurou em muitos lugares sem encontrá-lo. Finalmente, teve que admitir seu fracasso e resolveu cumprir sua promessa, entrando no fogo para terminar com sua própria vida. Imediatamente apareceu o Senhor Krishna e lhe disse: “Vem comigo e te mostrarei aonde foi o filho do brahmana.” Ambos foram a Mahakalpur e Krishna ordenou a Karanodashayi Vishnu que devolvesse ao brahmana seu décimo filho.

O ensinamento dessa história do Srimad Bhagavatam é que, quando cometemos ofensas aos acharyas, aos vaishnavas ou a Deus, toda nossa prática devocional se perde. Acreditando na palavra do brahmana, Arjuna cometeu ofensa a Maharaj Ugrasena, que era um acharya. Por causa dessa ofensa, ele se esqueceu de Vasudeva, Sankarshan, Pradyumna e Aniruddha, ou seja, da sua relação com Deus. Assim, quando o brahmana lhe disse que Vasudeva, Sankarshan, Pradyumna e Aniruddha haviam fracassado ao tentar salvar seu filho, Arjuna quis ser mais poderoso que eles. Com sua orgulhosa resposta ao brahmana, Arjuna cometeu uma ofensa aos pés de lótus de Chaturvyuha (Deus). Por isso, no momento do achamana (cerimônia de purificação), ele pronunciou namah shivaya em vez do Krishna mantra. Há muitos exemplos parecidos nas escrituras, mostrando que os modos desafiadores e competitivos destroem a devoção pura.

Nesses feitos anteriores se mostrou que, quando cometemos ofensas contra os acharyas e os vaishnavas, somos expulsos dos pés de lótus de Deus. Ainda que Arjuna fosse o devoto mais querido de Krishna, sua ofensa o levou a demonstrar um comportamento competitivo e a desafiar Maharaj Ugrasena e Vasudeva, Sankarshan, Pradyumna e Aniruddha.

Por favor, querido leitor, não quero ofendê-lo; estou simplesmente expressando minhas sinceras preocupações. Por favor, abençoe-me, para que eu possa seguir meu correto caminho devocional. Quero continuar escrevendo sobre este tema, oferecendo mais evidências de outras escrituras.

Seu humilde servidor, B.B.Bodhayan, Presidente do Sri Gopinath Gaudiya Math

DEVOÇÃO PURA E ESPÍRITO COMPETITIVO

(Parte II)
Por Srila Bhakti Bibudha Bodhayan Maharaja Acarya, Gopinath Gaudiya Math

Todas as glórias a Sri Guru, a sri Gauranga e à Brahma Madhva Gaudiya Saraswata Sampradaya!


É triste dizer que em nossa atual comunidade Gaudiya Vaishnava muitos somos vaishnavas apenas de nome. Exibimos devoção, mas o que estamos chamando devoção é na verdade o cumprimento de umas poucas regras de comportamento moral, no melhor dos casos. Mas, essencialmente, isso não pode ser chamado devoção. E mais, em nome da devoção estamos abusando do ideal de yukta vairagya, renúncia com o adequado ajuste ao tempo, lugar e circunstâncias. Espera-se que não sejamos seguidores de Ekalavya, que foi rejeitado por seu próprio guru, Dronacharya. Devemos buscar forças para nossa verdadeira existência no bhakti marga (caminho da devoção). O serviço ao mestre espiritual está baseado na rendição, não apenas em seguir uns poucos códigos morais. O serviço ao guru consiste em seguir o caminho devocional puro de acordo com suas instruções. Vai além da moralidade. Krishna provou quando ordenou a Arjuna que matasse seus próprios parentes.

Krishna disse a Arjuna: “Faça-o! Não cometerás nenhum pecado. Proteger-te-ei.” Não era “moral” matar Dronacharya, Bhishma e todos os outros grandes e piedosos heróis que lutavam pelos Kauravas, mas Arjuna se rendeu a Krishna, seu guru. Dessa maneira superou o princípio mundano da moralidade, que consiste em seguir normas e regulações para manter a sociedade humana em paz e ordem. Não devemos abandonar as instruções de nosso diksha guru. Porque sem nos rendermos, não podemos oferecer um verdadeiro serviço a Krishna. Srila Bhaktisiddhanta Saraswati Thakur Prabhupada nos deu a adequada concepção de yukta vairagya para nosso tempo. Devemos tratar de entendê-la se queremos servir à causa de Sri Chaitanya Mahaprabhu.

A rendição a Krishna aparece no Bhagavad Gita (18.66); Sri Krishna disse a Arjuna: “Abandone todas as variedades de religião (sarva-dharman) e renda-se apenas a Mim. Eu te liberarei de todas as reações pecaminosas.” Isso significa que devemos rejeitar sem nenhuma vacilação todos os métodos de avanço espiritual diferentes da rendição. Srila Rupa Goswami também recomenda que cultivemos a devoção independentemente dos interesses pessoais (anyabhilasita-sunyam) e das tendências ao karma e à jñana (jñana-karmady-anavrtam). A rendição é a característica primária de bhakti. Não podemos encontrá-la em nenhum outro lugar. As tentativas de alcançar o Absoluto adotando os caminhos do karma yoga e do jñana yoga, por exemplo, estão condenadas a nos decepcionar. Saranagati, rendição a Krishna, é o nome que Srila Bhaktvinoda Thakur deu a uma coleção de maravilhosas canções de sua autoria. Na canção introdutória desse livro, Bhaktivinoda escreve:

Sri Krishna Caitanya prabhu jive
daya kari sva-parsada sviya
dhama saha avatari atyanta
durlabha prema karibare dana
sikhaya saranagati bhakatera prana

Por compaixão às almas caídas, Sri Krishna Chaitanya veio a este mundo com Seus associados pessoais e Sua divina morada para ensinar saranagati, rendição a Krishna, e para distribuir livremente amor extático (prema) a Deus, que é muito difícil de obter normalmente. O saranagati é a vida verdadeira (prana) do devoto autêntico. Essa canção diz claramente que, sem redenção, um devoto está sem vida (prana). A rendição ao guru, aos vaishnavas e a Krishna lhe devolverá a vida. Não temos nada a perder. Esse é o benefício do processo de bhakti. Por outro lado, se uma pessoa tem bom caráter, mas não tem devoção, no melhor dos casos pode ser considerado apenas um moralista. A alma dá vida ao corpo, que de outra forma estaria morto. Da mesma maneira, uma vida de “devoção” sem rendição é como um cadáver, inútil. É impossível alcançar amor divino (prema) sem rendição. Nesse sentido, podemos aprender uma boa lição da famosa história de Ekalavya.

A história de Ekalavya

Quando Arjuna, o célebre pândava, era ainda criança, estudava com seus irmãos e primos as ciências militares com o grande mestre Dronacharya. Nesse tempo, Ekalavya, filho de Hiranyadhanu, o rei de uma tribo aborígene, motivado por sua fé, se aproximou de Dronacharya e lhe pediu que o instruísse na arte do arco e flecha. Dronacharya se negou a ensinar a esse potencial discípulo, porque queria testar sua fé. Porém, Ekalavya estava tenazmente determinado a aprender a atirar com o mestre. Assim, e sem que Dronacharya soubesse, Ekalavya foi ao bosque e elaborou uma imagem de Dronacharya em argila. Então começou a praticar com o arco em frente a essa imagem, dia após dia. Concentrando sua mente em Dronacharya dessa maneira, Ekalavya gradualmente chegou a ser o melhor arqueiro do mundo, mais hábil até do que Arjuna.

Arjuna não apenas era o amigo mais íntimo de Krishna, mas também era o discípulo mais querido de Dronacharya. O mestre uma vez lhe prometeu: “Nunca ninguém te superará nesta arte. Serás o melhor arqueiro do mundo e assim te recordarão, te prometo!” Um dia, os kauravas e os pândavas foram dar um passeio no bosque, e de repente viram algo surpreendente. Jazendo pacificamente no solo estava um cão cuja boca havia sido fechada por sete flechas. Os rapazes pensaram que essa pessoa que capaz de realizar essa extraordinária façanha era melhor até do que Arjuna. Quando penetraram no bosque mais denso, viram um arqueiro desconhecido praticando incansavelmente a pontaria. Era o arqueiro que havia disparado contra o cachorro, porque o animal estava perturbando sua concentração com seus latidos.

Quandos os rapazes voltaram ao palácio, relataram detalhadamente o incidente a Dronacharya. Arjuna humildemente recordou a Dronacharya sua promessa de que ninguém o superaria na arte do arco e flecha. Dronacharya, que estava surpreso com a existência de um arqueiro como esse, foi ao bosque com Arjuna para conhecê-lo. Quando chegaram à casa de Ekalavya, viram-no sentado em frente à imagem de argila de Dronacharya, disparando flechas com grande perícia. Assim que Ekalavya os viu, lhes ofereceu os devidos respeitos, honrando Dronacharya como seu mestre. Quando ouviu que Ekalavya o considerava seu guru, Dronacharya lhe pediu a dakshina. A dakshina é a doação ou o presente que se dá a um sacerdote ou ao próprio guru. Antigamente os mestres costumavam solicitar a dakshina de seus discípulos no momento da iniciação.  Ekalavya se postou com as mãos juntas em frente de Dronacharya, e lhe disse que estava pronto a fazer o que este lhe ordenasse. Dronacharya pediu a Ekalavya o dedo polegar de sua mão direita. Ainda que a perda do seu polegar implicasse que nunca mais poderia voltar a manejar o arco, Ekalavya o cortou sem nenhuma vacilação.

Um exemplo perigoso

Srila Bhaktisiddhanta Saraswati Thakur explica que Krishna, bhakti e o bhakta compartilham a mesma natureza absoluta. Um devoto desfruta de uma posição especial porque o Senhor está favoravelmente inclinado em seu favor. Por outro lado, um não-devoto pode ter muitas boas qualidades e virtudes morais de acordo com os padrões da vida mundana, mas todos esses valores não têm valor aos olhos de Deus. Todo aquele que pense que o moralismo supera o bhakti falhará em identificar o ponto sutil. Como tinha sido rejeitado inicialmente por Dronacharya, Ekalavya fez uma imagem de argila de seu mestre, sem o consentimento deste. Então adquiriu a perfeição no arco e flecha praticando em frente a essa imagem. Isso parece ser um exemplo de devoção ao mestre.

De fato, parece que Ekalavya estava completamente rendido ao seu guru. Do contrário, como pôde cortar seu polegar sem pensar duas vezes? No entanto, na minha humilde opinião, um devoto no caminho da rendição deve ignorar o exemplo de Ekalavya. Quando Dronacharya se recusou a ensinar-lhe o uso do arco, tinha boas razões para isso. Ekalavya deveria ter esperado a misericórdia de seu guru, mas não o fez. Pelo contrário, urdiu sua própria forma para conseguir a misericórdia, moldando uma imagem em argila e treinando diante dela. De fato, a mente de Ekalavya estava contaminada pelo desejo de ser um hábil e famoso arqueiro. Ele queria superar a destreza de Arjuna na pontaria. Isto não era uma boa atitude, recordando sobretudo o status que Arjuna tinha de devoto puro do Senhor. O desejo de ser melhor ou mais famoso que outro não é uma atitude devocional. A atitude de Ekalavya era também contrária à vontade de Dronacharya. Portanto, Ekalavya cometeu guru aparadha (ofensa ao guru) ao desobedecer a Dronacharya, e vaishnava aparadha (ofensa ao vaisnava, devoto do senhor) ao sentir inveja de Arjuna. Esta é a razão pela qual Ekalavya foi mais tarde morto por Krishna e fundido em Sua refulgência brahmajyoti. Essa é  forma com que Krishna lida com os demônios. Eles conseguem sayujya mukti, a liberação que sempre é desprezada pelos devotos.

A forma como Ekalavya se comportou com Dronacharya estava também contaminada pelo imperssonalismo. Ele na verdade não seguiu com o coração as instruções do guru. Em vez de seguir as instruções de seu guru vivo, utilizou uma imagem deste em argila para alcançar suas próprias ambições. Ekalavya tentou atrair a atenção de seu guru, em vez de render-se. Isso mostra que sua devoção era artificial. Em outras palavras, ele mostrou aparentemente o comportamento de um discípulo, mas seu coração estava consumido pelo egoísmo. Da mesma maneira, não podemos mostrar a aparência de um vaishnava enquanto abrigamos a atitude de uma pessoa mundana. As penitências sem a aprovação do guru e dos vaishnavas não entram na categoria de bhakti. As pessoas materialistas, com uma mentalidade demoníaca, também realizam muitas austeridades, mas seu objetivo é conseguir benefícios materiais e desfrutar da gratificação sensorial. Ainda que Ekalavya não estivesse interessado nos prazeres sensoriais grosseiros, suas austeridades não haviam sido aprovadas por uma autoridade. Assim, o perspicaz Dronacharya foi capaz de detectar que sua devoção era apenas uma farsa. É por essa razão que o exemplo de Ekalavya é perigoso, especialmente para aqueles que se iniciam no caminho de bhakti.

Eliminando Ekalavya de nossos corações

Estamos vivendo tempos difíceis. Temos de enfrentar muitos problemas até mesmo na associação com outros vaishnavas. Os antigos membros da Gaudiya Vaishnava estão de certa forma confundidos com a natureza desses problemas. Eles confessam que não tem idéia de como chegar a soluções positivas. O assunto é muito intrincado e requer maior análise. O que se deve fazer? É verdade que, se seguirmos as instruções de nosso guru, Krishna eliminará o fantasma de Ekalavya de nossa mente. Devemos nos render, e se somos sinceros, o Senhor aceitará nosso serviço. Não devemos ser devotos somente de nome ou de roupa. Deveríamos deixar de pensar e de agir como Ekalavya. Devemos chegar a ser saragrahis vaishnavas, não somente adoradores de formas, como Ekalavya. Nas palavras de Srila Sridhar Maharaj: “devemos mergulhar fundo na realidade”. Lochan Das Thakur declarou que estamos mastigando um pedaço de madeira seca em vez de um pedaço de cana-de-açúcar:

ikhu danda bhavi katha cunili man kemone paibi meoha

Como poderemos provar a doçura da cana-de-açúcar mastigando um pedaço de madeira seca? A cana-de-açúcar parece madeira seca mas é doce e saborosa. Os vaishnavas de nome ou de roupa podem ter muitos projetos, mas não inspiram devoção pura a outros. Os vaishnavas que estão orientados pelo exterior estão sempre ocupados construindo templos e expandindo suas organizações religiosas, mas infelizmente não tem tempo para cultivar práticas devocionais, como escutar e cantar em associação com outros devotos, ou para aconselhar os novatos de forma a fortalecer sua fé. Se mastigamos a madeira seca da falsa rendição, como poderemos provar a doçura de bhakti? Srila Bhaktivinoda Thakur explicou os sintomas da rendição em saragati:

dainya atma-nivedana
goptrve varana avasya
rkhibe krsna visvasa
matra karyera svikara
bhakti-pratikula-bhava
varjanangikara

“As formas do saranagati são humildade, autoconsagração, aceitação de que o Senhor é o único mantenedor, fé em que Krishna com certeza nos protegerá, realização apenas de atos favoráveis à devoção pura e renúncia às condutas contrárias à devoção pura.”

Sad-anga saranagati haibe jamhara tamhara prarthana sune sri-nanda-kumara

“O jovem filho de Nanda Maharaj, Sri Krishna, escuta as orações de qualquer um que se refugie nEle por meio desta prática sêxtupla.”

A menos que nos rendamos a Krishna, Ele não aceitará nenhuma oração nossa. Como aceitará então nosso serviço? Isso é certamente muito triste. Naturalmente somos os eternos servidores de Krishna, mas como perdemos a rendição e/ou a sinceridade, não podemos servi-Lo. O sinal de sinceridade é aceitar que Krishna vem por meio do guru. Todas as escrituras confirmam isso. Meu mestre espiritual, Sua Divina Graça Srila Bhakti Promode Puri Goswami Maharaj,  me disse que a assim chamada “liberdade” é prejudicial à vida espiritual. Não devemos nos separar do desejo do guru e dos vaishnavas, como Ekalavya o fez. Não devemos estabelecer códigos morais diferentes da rendição ao guru e a Krishna. Não devemos sentir inveja das opulências dos demais, como fez Ekalavya com relação a Arjuna. O exemplo da devoção pretensiosa mostrada por Ekalavya pode infectar o coração de qualquer aspirante ao caminho espiritual. A devoção ao guru e a Krishna nunca deve ser realizada com o propósito de alcançar benefícios materiais. Portanto, devemos permanecer muito alertas e arrancar de nós mesmos a malignidade dos desejos mundanos tão logo apareçam.

Em conclusão, rogo com as mãos juntas para que o leitor perdoe todas minhas ofensas e me abençoe para que eu possa chegar a ser um verdadeiro discípulo de meu Gurudeva e um verdadeiro servidor de todos os vaishnavas.